quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Habitação social: uma constante problemática na história das cidades

Diante da fundamental importância que constitui o abrigo como forma de suprir uma das necessidades humanas mais primárias, a questão habitacional é um dos grandes expoentes da urbanidade e que há tempos configura-se como a problemática primordial da ocupação humana no território, tendo em vista que existem hoje no mundo cerca de um bilhão de pessoas sem moradias, e há um aumento previsto para dois bilhões para as próximas três décadas.1 A habitação social surge, portanto, como uma forma de superar esse déficit habitacional por meio de projetos mais econômicos, tornando-os mais viáveis, mas o que historicamente implicou em um vínculo com a baixa qualidade espacial e ambiental dessas moradias. Apesar de se constituir uma constante ao longo da história das cidades, foi a partir da revolução industrial e do intenso processo de urbanização, no entanto, é que tal problemática adquiriu contornos quantitativos nunca antes delineados.

Os baixos salários e a lógica de mercado aplicada à produção imobiliária urbana foram responsáveis pela constituição de um quadro de grande precariedade das condições habitacionais, num contexto de urbanização acelerada. A emergência de políticas públicas nesse setor decorreu de uma convergência de heterogêneas perspectivas que se debruçaram sobre a questão: as constatações e as denúncias da situação; as formulações utópicas propositivas; e as experiências não-governamentais. No que diz respeito às constatações e denúncias, podemos listar um grande número de iniciativas, algumas delas governamentais, outras não. As comissões de inquérito, o jornalismo de denúncia, os relatórios médico-sanitários, as denúncias na produção literária ou mesmo iconográfica constituíram uma referência de base para as proposições de reforma urbana e os programas de habitação social (SILVA, 2008).

Segundo SILVA (2008), tais reformas tiveram suas primeiras intervenções no século XIX, a exemplo das vilas e cidades operárias, as ações filantrópicas e as experiências das associações de mutuários. Nesta época, grande parte da população de baixa renda das cidades industriais residia em moradias extremamente precárias, onde a insalubridade e o intenso adensamento eram elementos instrínsecos, o que provocou a disseminação de epidemias como a tuberculose e a cólera entre as décadas de 1830 e 1840.

De acordo com Caselli (2007), apesar deste quadro de nítida precariedade ser uma constante em toda Europa, a França encontrou-se parcialmente resguardada deste contexto, pois era, nesta época, um país essencialmente agrário e pouco industrializado e que, portanto, não tinha grandes problemas urbanos referentes à crescente urbanização e ao êxodo rural. Somente após a Primeira Guerra Mundial com o movimento das Cidades Jardins é que houveram intensos desenvolvimento e expansão sub-urbana na França. “Fato que só foi possível graças ao desenvolvimento dos transportes coletivos e a jornada de trabalho de 8 horas, que permitia que o operariado tivesse mais tempo livre” (CASELLI apud SCHOENAUER, 2000).

Em Paris, o encarecimento dos valores imobiliários tornara difíceis as alternativas habitacionais para a população de mais baixa renda. Uma parte dela passou a ocupar imóveis subdivididos nos bairros mais antigos. Ocupações ilegais (bidonvilles) ocuparam terrenos vazios, principalmente nas áreas periféricas antigamente ocupadas pelas fortificações. As áreas mais afastadas foram ocupadas por um grande número de loteamentos precários desprovidos de infra-estrutura e de serviços (SILVA, 2008).

Em meio a estas transformações na escala e na organização do território da cidade, surgem, na segunda metade do século XIX, os primeiros planos de reurbanização de Paris, visando atender os interesses da burguesia quanto à limpeza e qualidade estética das cidades (MAIO, SANT’ANA, 2006). Tais mudanças, no entanto, adquiriram novo sentido após a Primeira Grande Guerra e a Crise de 29, posto que houveram grandes perdas materiais e econômicas, o que refletiu diretamente na questão habitacional, comprometendo-a não só quantitativamente (1 milhão de unidades destruídas), mas também em termos qualitativos, com a precariedade ainda maior das habitações operárias, das quais foram suprimidas até mesmo as instalações sanitárias, por serem consideradas um luxo à tal classe. A destruição de cidades inteiras e o forte incremento dos custos de construção tornaram necessárias novas soluções.

“Após a 1ª Guerra, as massas estão mais politizadas e organizadas, aumentando o poder de exigência das mesmas, fazendo com que arquitetos e governos passassem a ter a necessidade de considerar seus desejos e reivindicações na hora de projetar para a população de baixa renda” (CASELLI, 2007). Com o final da Primeira Guerra Mundial, os governos dos países atingidos investiram pesadamente na construção de habitações para manter o otimismo da população. Outra mudança visível após a guerra, segundo esta mesma autora foi a estrutura familiar, que deixa de ser patriarcal, estabelecendo relações de poder multilaterais, com inserção dos filhos e da mulher nas decisões familiares. Tal autonomia promoveu uma independência dos membros que culminou em um intenso individualismo que teve claros reflexos na organização espacial das moradias, que passaram a delimitar cômodos com claras exigências privativas. De acordo com Tramontano (apud Caselli, 2007), surge também neste contexto, a necessidade da liberação dos trabalhos domésticos cotidianos pela ausência da mulher na realização das tarefas de casa.

Os novos projetos de habitação do pós e entre-guerras, no entanto, buscaram agregar novos valores condizentes com a realidade de cada país, além de incorporar noções de conforto ambiental e salubridade, com intuito de impedir a proliferação de novas epidemias (Caselli, 2007). Seguindo esta política de reconstrução e adequação, a França investiu massivamente na construção habitacional de baixa renda até 1932, período a partir do qual cessaram os subsídios para empréstimo (Schoenauer apud Caselli, 2007).

No período imediato após a Segunda Guerra Mundial, A França, assim como toda Europa, apresentava um quadro de estagnação econômica, além milhares de perdas humanas e arquitetônicas. Tal quadro só começa a reverter-se a partir da implementação do Plano Marshall em 1948, visando recuperar a quantidade de unidades habitacionais destruídas além de suplantar o déficit existente desde esssa época (MAIO, SANT’ANA, 2006).

A técnica evoluiu consideravelmente durante as duas grandes Guerras Mundiais, principalmente depois da 2ª Guerra, quando a indústria bélica ociosa foi revertida para a produção de bens de consumo civil. Em relação ao investimento em infra-estrutura urbana, essa evolução técnica, provocou um aumento do custo do solo além de expulsar a população mais carente das áreas centrais, formando as periferias. A crescente industrialização da economia fez com que as cidades recebessem um grande contingente de novos moradores, sem infra-estrutura nenhuma para que isso acontecesse (CASELLI, 2007).

Todas essas transformações técnicas, sociais e econômicas impeliram mudanças também nas formas pensar o ato de morar, a exemplo dos movimentos o Werkbund, o Neues Bauen e a Máquina de Morar de Le Corbusier, criados na primeira metade do século XX. Novos padrões econômicos, de comportamento, de relações familiares e de trabalho, bem como das próprias funções sociais dos espaços, tornaram necessário também, uma adaptação da moradia, que passou a ser direcionada às noções de habitação mínima, tanto econômica como dimensionalmente.

A partir destas novas correntes arquitetônicas, os arquitetos passam a ter uma abordagem mais científica do problema da habitação, o que deveria possibilitar que houvesse a determinação das necessidades dos usuários. A arquitetura passa a ter uma função prática, e a questão do artístico fica em desuso, a economia e a administração da obra passam a ter um maior destaque (CASELLI, 2007).

O aspecto social da moradia só ganhou importância a partir do movimento moderno, em função da busca pelo aumento da produtividade da classe trabalhadora por meio do crescimento da qualidade de vida. O pragmatismo e a racionalidade incitados por este movimento buscou a criação de soluções o mais econômicas e eficazes possível, através da industrialização da construção e da redução do habitat à sua forma pura (LIMONAD apud Henri Lefebvre em O Direito à Cidade, 1969) e adaptados a modelos padrões de usuário.

A busca pela padronização e simplificação do processo construtivo dessas habitações mínimas permanece visível nos anos 1960 e 1970 a partir do desenvolvimento de superestruturas montadas com sistemas pré-fabricados. Nessa época surgiram grupos de resistência à rigidez do modernismo como o Archigram, Metabolistas e Team 10, que inclusive foi responsável pelo fim dos CIAM (CASELLI, 2007). A crítica residia na

[...] impossibilidade destes grupos sociais transformar e interagir com seus espaços de moradia, definidos à sua revelia, e que integram sua vida cotidiana e sua reprodução. A segregação de usos, a homogeneização dos espaços e a padronização das edificações, com a eliminação das ruas e dos espaços de encontro e contato, aparentemente, tendem a distanciar as pessoas e criar situações de desagregação de valores sociais e comunitários. Somar-se-ia a isso a impotência da possibilidade da população em participar nas decisões relativas ao seu cotidiano e à sua reprodução, uma vez que não só os apartamentos, mas os produtos arquitetônicos, e entre eles os conjuntos habitacionais apresentarem-se como um fato consumado. Estes conjuntos habitacionais, sem dúvida podem haver representando uma solução para uma demanda de habitação em massa, em um determinado momento, mas caberia vê-los mais como uma solução temporária do que definitiva (LIMONAD, 2006).


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