quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Nemausus: uma nova concepção para um antigo problema

Desde então, muito tem-se estudado e proposto acerca da aproximação entre usuário e moradia, por meio da flexibilização do espaço, buscando resgatar as noções de identificação entre eles, em contraposição a essas tipificações e padronizações do espaço e do usuário. Essas relações também são cabíveis de discussão em uma escala maior estabelecida com a cidade. Tais ideias encontram seu expoente na habitação social, posto que os projetos são feitos para um público anônimo, cuja realidade é tão multifacetada que torna indispensáveis espaços potencialmente adaptáveis. Tudo isso aliado a um nível de exigência cada vez maior dos usuários para com a qualidade do espaço.
Todos esses conceitos convergem em um projeto, que como poucos, tornou-se referência para a tipologia da habitação social: Nemausus, de Jean Nouvel. Construído em 1987, na cidade de Nimes na França, ele mostrou-se inovador não só para o contexto francês e europeu, mas também para todo o mundo, pois busca romper com toda a tradição de estandartização e rigidez das habitações sociais, em sua maioria construídas até então.
Seu êxito reside primordialmente em uma comunhão de fatores que contempla, basicamente, uma relação, em certa medida, desequilibrada entre custo e dimensão espacial, posto que, torna possível a concepção de espaços significadamente mais amplos e com baixo custo, contrariando uma tendência história. Tal mérito se deve principalmente à industrialização do processo construtivo e dos materiais, adaptando a racionalidade pregada pelo movimento moderno em um novo contexto.
O principal desafio do projeto seria uma concepção espacial que refletisse e acompanhasse todas as constantes transformações vivenciadas pela sociedade francesa. Para tanto, Nouvel buscou o conceito do projeto em premissas que, segundo ele, seriam indispensáveis ao traçado e uso do espaço de morar, que são: maior área possível, flexibilidade e baixo custo.
O projeto é estruturado em dois prédios paralelos de três pavimentos, sendo um deles menor por limitações espaciais do terreno. As extremidades da face leste voltadas para a Avenida Général Leclerc são arredondadas e ambas levantadas sobre pilotis que fornecem o estacionamento coberto em um nível mais baixo. O bloco maior está voltado para a Rua Vistre na face norte. No total, o conjunto possui 114 apartamentos divididos em três tipologias diferentes quanto ao arranjo espacial e área, sendo térreo, duplex ou triplex, resultando em 17 tipos diferentes de unidades. A superfície total é de 10.400 m2, sendo a média de área por apartamento de 91 m2, muito acima de um tradicional exemplar de habitação social.






















A maximização do espaço das unidades é obtida pela minimização das áreas comuns cobertas, tais como as escadas e halls, por meio de galerias de acesso formadas por terraços e escadas externos que margeiam toda a extensão dos blocos, enquanto os elevadores se encontram na parte interna do prédio. Isto é possível graças à disposição das unidades que coincidem em largura com o prédio. Este desenho promove enormes ganhos quanto ao conforto ambiental, em termos térmicos, acústicos e de ventilação, como também de privacidade, uma vez que do lado oposto (face sul) à circulação externa (face norte) cria-se outra linha de terraços, que correspondem a espaços privados de cada unidade, criando um nível intermediário entre o público e o privado dentro do próprio apartamento.

ACESSO DO CONJUNTO




TERRAÇOS





ESCADAS EXTERNAS





Estes dois tipos de terraços foram concebidos visando não apenas a criação de espaços de circulação, mas também para extensão dos apartamentos, objetivando atender à cultura de reunião em espaços abertos presente nessa região. Para tanto, estes espaços possuem largura avantajada (2,5 m), além de contar com bancos em toda sua extensão, reiterando assim seu papel de convite à sociabilidade.
Até mesmo a locação destes espaços foi pensada sob esta visão, já que o terraço "privado" volta-se para a rua, numa tentativa de acentuar esse caráter íntimo com relação à praça interna, mas ao mesmo tempo, propondo uma interação com as pessoas que dividem este mesmo espaço, ou seja, o conjunto habitacional pela locação do terraço destinado à circulação voltado para a praça visando concentrar todo o espaço social do conjunto junto à praça.








A praça, portanto, como um elemento-chave para socialização dos moradores. Criada entre os dois prédios, conta com uma grande quantidade de árvores e equipamentos como forma de incitar a permanência e o convívio entre os moradores, resgatando princípios básicos de sociabilidade e de identificação com o entorno. Esta preocupação constitui-se como um dos ponto inovadores do projeto Nemausus.




Outros elementos que foram concebidos tendo em vista a integração entre os usuários e o entorno foram as grandes aberturas dos apartamentos para o exterior, desejáveis também, para criação de apartamentos ambientalmente confortáveis, devido ao clima ameno deste local. Nos apartamentos duplex, em especial, tais aberturas são feitas por grandes portas que coincidem com toda a dimensão da fachada da unidade, permitindo, portanto, a continuidade entre a área social do apartamento e o terraço mais privativo do prédio (voltado para a rua), além de romper com o estigma da casa entre quatro paredes ao conceder a possibilidade de abrir o apartamento, como se fosse um simples cortina. Este desenho que permite diferentes articulações da fachada pelos moradores garante o rompimento com a monotonia formal dos prédios.



A apropriação do espaço do apartamento pelo usuário através do uso dos terraços e das aberturas diferenciadas, encontra seu expoente máximo no arranjo espacial flexível das unidades. Este pode ser enunciado como o principal elemento inovador do projeto Nemausus para o segmento da habitação social. Determinando-se apenas a área o núcleo hidráulico de forma centralidade na planta, Nouvel garante ao usuário uma infinidade de apropriações do espaço, oferecendo até mesmo dois ou três níveis, no caso das tipologias duplex e triplex, como opções de espaços mais amplos e segmentados.








A capacidade de adaptação do espaço também é levada em última instância pela ausência de acabamentos das unidades, o que contribuiu não só para a neutralidade inicial dos apartamentos, mas também, para diminuir de forma significativa o custo das unidades.


NÚCLEO HIDRÁULICO DAS UNIDADES



Outra premissa fundamental para o êxito do projeto foi a escolha de materiais industrializados pré-fabricados e objetos de fácil repetição e montagem. As concepções de estrutura e de revestimento externo foram resumidas ao concreto e ao metal. Para tanto, os prédios foram apoiados sobre uma série de pilares de concreto dispostos a cada cinco metros, delimitando a área de estacionamento. Esta decisão acompanha a ideia de permitir a continuidade visual de um lado a outro. Sobre estes pilares descarregam as paredes de concreto pré-fabricado que separam cada apartamento, as quais se repetem da mesma maneira ao longo dos três pisos. Desta maneira, geram-se módulos idênticos em todo o edifício, os quais, combinados uns aos outros, criam-se as diferentes tipologias.


ESTRUTURA BÁSICA DO CONJUNTO



ESTACIONAMENTOS



As escadas metálicas são estruturalmente independentes, de seções retangulares pintadas com faixas vermelhas e brancas, destacando a linguagem industrial. Sua conexão com a circulação horizontal se faz por meio de pontes. Tal concepção propicia ganho para área dos apartamentos dentro do volume dos prédios. Para o piso e revestimento dos terraços, das escadas e dos parapeitos foram usadas chapas microperfuradas de alumínio.









O revestimento das fachadas é feito por chapas galvanizadas de alumínio, contando também com esquadrias metálicas padronizadas que se abrem integralmente na fachada principal, ou parcialmente na fachada oposta. No interior das unidades, as escadas também são metálicas e comunicam os diferentes espaços do apartamento. A cobertura dos terraços também é feita em material metálico pré-fabricado.


ESQUADRIAS



FACHADAS



COBERTURA



ESCADAS INTERNAS



Além da diminuição dos custos, a escolha de materiais foi feita atentando-se para as questões de conforto ambiental, para conservação de temperatura e otimização da ventilação, principalmente. Outra vantagem específica para a adoção dos painéis de alumínio do revestimento das fachadas reside na facilidade de troca individual destes elementos, gerando baixíssimos resíduos de demolição e que, ainda concedem a possibilidade de reciclagem.3



CONCLUSÃO
O projeto Nemausus, portanto, pode ser considerado uma referência de suma importância para os projetos de habitação social não só por atender às limitações econômicas, mas por fazê-lo preservando a qualidade espacial e a humanização dos espaços. O resgate do sentido de habitar em sua forma mais profunda e verdadeira, por meio da criação de espaços de sociabilidade essenciais à reprodução do cotidiano da família e da sociedade, respeitando a diversidade e todo o contexto histórico e cultural, rompe com o fracasso crônico das habitações sociais até então, inaugurando um novo modo de pensar este tipo de arquitetura. Nemausus, portanto, é um projeto que evidencia todo o pensamento de Jean Nouvel quanto à aliança de acabamento tecnológico e compreensão individual dos lugares4, reiterado por meio das palavras do próprio arquiteto “[...] a modernidade da arquitetura hoje está no vínculo com o contexto. Quando se constroem vínculos genéricos, para serem colocados em cada lugar, não específicos para um âmbito urbano, são feitas coisas sem valor” (BENÉVOLO, 2007).

NOTAS
1- Anna Tibaijuka, Diretora Executiva do Habitat – Programa habitacional da ONU – 2006. Apud política habitacional na França
2 - http://es.wikiarquitectura.com/index.php?title=Viviendas_Nemausus
3 - http://www.cse.polyu.edu.hk/~cecspoon/lwbt/Case_Studies/Nemausus/Nemausus.htm#
4- BENEVOLO, 2007.





REFERÊNCIAS


BENÉVOLO, Leonardo. A arquitetura no novo milênio. Tradução: Letícia Martins de Andrade. São Paulo, Estação Liberdade, 2007.

CASELLI, Cristina Kanya. 100 anos de habitação mínima. Ênfase na Europa e Japão. 2007. 273 f. Tese (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo). Faculdade de Arquitetura e Urbanismo – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2007.

LIMONAD, Ester. "Paris em chamas": arquitetura ou revolução? Revista Bibliográfica de Geografía y Ciencias Sociales. (Serie documental de Geo Crítica). v. XI, n. 644, 10 de abril 2006. Data de acesso: 20/08/2009.

MAIO, Carina Oliveira de.; SANT’ANA, Daniela Glizt. Política habitacional na França. 33 p. São Paulo, 2006.

SILVA, Luís Octávio da. Primórdios da habitação social: as experiências do entreguerras na Europa e Estados Unidos. Arquitextos 097. Texto Especial 475, jun. 2008.Data de acesso: 20/08/2009.

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